quando eu tinha talvez quatro, cinco anos, e a minha irmã ainda não tinha nascido, e os meus pais ainda faziam férias, estávamos na praia de espinho, para a qual íamos quase todos os anos sem exceção, e eu fiquei doente. uma gastroenterite, uma indisposição - não sei agora e eles não sabiam também na altura. mas o meu pai conta que eu me contorcia com cólicas, que tinha vergonha de ir à casa de banho mas tinha os intestinos à volta, e que apenas pedi para irmos embora, e isto só quando não aguentei mais e lhe disse baixinho, pai, dói-me a barriga. o meu pai também conta que no banco de trás do carro, eu não aguentei mais e comecei a chorar. ele estendeu-me a mão para eu a agarrar, a outra continuava no volante. um pedaço desta imagem viria a repetir-se anos mais tarde, então já com a minha irmã nascida; nesse dia era ela que chorava, e também o meu pai conduzia e também ele lhe agarrava a mão pequenina até chegarmos a casa. em ambos os dias, a minha mãe estava de braços cruzados no lugar do passageiro, o olhar colado fora da estrada, o pé a bater no tapete. não sei se era de noite, mas quando esta cena aconteceu comigo, a imagem que tenho é de me deitar no banco, ver um céu escuro e esperar que chegássemos rápido a casa. as viagens, então, pareciam eternas. mal sabíamos nós que não eram, e que tantas vezes viríamos a desejar que voltassem a ser. nesse dia, meados dos anos noventa, quando eu comecei por fim a chorar no banco de trás, a minha mãe virou-se bruscamente e mandou-me calar. o meu pai nunca se esqueceria, até hoje, da frase que eu disse a seguir, nem chorar posso. eu também não me esqueci. os anos passaram, eu chorei muito e pouco.
este ano, enquanto fazia o caminho de santiago com as minhas amigas, a vida traiu-me um bocadinho. quando temos 29 anos e andámos em montanhas e trilhos grande parte da nossa vida, e somos pessoas ativas e sem problemas de saúde, não estamos muito preparados para as pernas nos falharem sem força e quase ficarmos de joelhos no meio da estrada. ou para, numa fração de segundo, tudo ficar preto e apagado até voltarmos a ver e as nossas amigas nos terem nos braços e uma senhora que passava na estrada nacional ter parado o carro para nos perguntar se precisamos de ir ao hospital. é difícil compreender o que está a acontecer quando não conseguimos levantar as pernas da cama, quando as dores são tão fortes e o esforço tão rasgador que subir um passeio nos faz tremer e gemer. ou quando choques de dores nos fazem dobrar sobre nós mesmas, a força nos sai do corpo de repente, e vomitamos o nada que temos dentro. olhamos ao espelho e algo não parece certo, mas não sabemos o quê, até que as amigas começam a dizer Carol, não pareces tu, até nos vermos brancas e de olhos esbugalhados e depois te dizerem também, isto já em casa, isto já mais tarde, tu simplesmente não falavas. não havia nada dentro de ti.
durante o caminho chorei muito, mas não sobre isso. lá, eu não tive medo, tudo o que queria era continuar e chegar com elas onde tínhamos de chegar. mas depois de chegarmos a Santiago juntas, braços nos braços umas das outras, e essa imagem se gravar em mim para nunca mais desaparecer, voltámos para casa. e eu não fiquei com medo lá, fiquei com medo aqui. não foi lá que me senti sozinha, aqui. é o recordar de como me senti que me deixa assim.
quando voltei de santiago, uma grande amiga, a Hannah, perguntou-me quais tinham sido as minhas principais reflexões. eu enviei-lhe as que tinha escrito da outra vez; e por telefone refleti sobre as desta. e disse-lhe algo como, acho que desta vez foi sobre as pessoas, sobre eu e as sobre as outras pessoas que foram comigo, sobre eu na vida, sobre a perda, sabes? eu disse-lhe isto e ainda não sabia nada do que viria a saber a seguir, não sabia o quanto tal viria a fazer sentido. também lhe disse que as minhas amigas me tinham salvado a vida, ainda sem saber exatamente o peso desta frase, até mais tarde uma profissional me dizer o mesmo, as tuas amigas salvaram-te, e eu chorei enquanto respondia, eu sei, eu sei, não lhes consigo retribuir.
só chorei a primeira vez sobre isso uns dias depois de Santiago, nessa consulta. e depois chorei mais e mais nos que vieram a seguir. quando me disseram, sabes o que te podia ter acontecido?, e nos falam de falência e de insuficiência, e de atingir o limite, tudo se torna um pouco demais. e nós pensamos eu podia morrer? não é possível que eu fosse morrer, e os meus pais? e a minha irmã? eles não me podem ver morrer. e depois os exames, e as análises, e as palavras, temos de ver se está tudo bem com o coração. numa outra consulta, digo à minha médica, eu senti-me mesmo, mesmo, mesmo mal, uma afirmação que eu não faria noutro lugar para não fazer disto um grande problema, mas que fiz ali, para que ela entendesse, para que ela percebesse talvez, o que eu queria dizer: eu tive muito medo. foi assustador. posso chorar? eu queria também dizer, eu sei que está tudo bem, que eu estou bem, talvez não tenha legitimidade para me sentir assim, não estou doente, talvez não seja ainda agora a minha vez de chorar, mas posso? não disse, engoli em seco, senti-me ainda pior. de volta aquele sentimento de quando caímos em criança e antes do choro vem a vergonha por sabermos que queremos chorar. a vergonha por doer. sinto-me pequenina dentro do consultório, sinto-me tímida e ridícula, sinto-me com vergonha como em pequena, à frente das pessoas, as mãos pousadas no colo, os olhos muito abertos.
não sei o que me assustou nesta história, não sei ao certo porque choro agora sempre que penso no assunto. acho que poucas vezes na vida sinto efetivamente ter medo, ou fico assustada. muito trabalho não me assusta, outro mestrado não me assusta, cemitérios não me assustam, fico inabalada com os desastres, os crimes, as cenas grotescas. já estava à espera, já conheço isto. mas isto eu não conhecia. desta vez fiquei com medo. e ter medo fez-me sentir outra vez criança, e reviver o aperto de ter muitos medos mas não poder chorar. fez-me sentir como quando tinha medo do escuro, e do diabo, e do terrorismo, e de que os meus pais não chegassem a casa, quando via aquele anúncio na televisão que dizia dê prioridade à vida e no qual se ouvia o som de um carro a despistar-se, e depois a desfazer-se com o embate. medo de que não chegássemos ao novo milénio, que me levou a enterrei a última revista de 1999, que tinha na capa, a vermelho, o anúncio da nova era. enterrei-a no jardim dos meus avós, ao pé das rosas. há muito tempo que não me sentia assustada. estar assustada é muito particular. é algo longitudinal, é comprido, alastra-se até longe. não é só ter medo. ou sofrer um susto. é a fragilidade que fica depois. é algo que se parte dentro de nós e fica assim, os bocados espalhados, até que a carne os engula de novo ou nós os consigamos cuspir.
acho que na altura não entendi que tudo isto teria um impacto emocional. talvez seja óbvio, mas eu fui educada para seguir em frente. se não correu mal, siga. se correu mal, siga na mesma. não tens nada que te queixar. não foi nada assim tão grande. que adianta chorar sobre isso? mas nos últimos dias, em casa com o meu pai, depois com a minha mãe, chorei muito. eu não chorava há muito tempo à frente da minha mãe. na verdade, tirando as vezes em criança, em que o choro não durava muito e foi secando com o tempo, lembro-me de chorar no primeiro ano de faculdade, aos domingos, quando íamos acabando de almoçar, e eu sabia que estava quase na hora de voltar para o porto, e só queria deixar de existir, deixar de ir, deixar de sentir que me estava a afogar sozinha, mas lentamente, como se alguém me puxasse para trás e me abrisse a boca e despejasse algo lá para dentro, grosso, peganhento, até a boca transbordar e o resto tombar para o chão. uma vez em particular chorei à beira dela porque ia ter um exame e achava que não tinha estudado o suficiente. lembro-me de gastar as últimas forças a tentar decorar algo, até adormecer no tapete do quarto da minha mãe. acho que foi aquela imagem que a fez ter simpatia, acordar-me para me dizer, pela primeira vez na vida, que não fazia mal se tirasse má nota, e ficar a ver-me chorar e soluçar. desta vez, já adulta, sentei-me à mesa para almoçar com ela e os olhos começaram a picar-me com as lágrimas. e num instante eu estava a chorar e a soluçar como nunca o tinha feito e a minha mãe dizia-me, eu não te sei confortar porque também não me sei confortar a mim. olhei para ela e ela chorava também.
dei por mim a pensar, pode acabar em breve, sem saber bem o quê ao certo. o bom e o mau. às vezes não sabemos o que está a acabar nem a começar. as notícias chegam e quantas vezes não sabemos se são boas, se são más. mas pode acabar. tudo. e eu que me fascino com o tema da morte, sobre saber mais sobre ela, falo de cemitérios e visito-os por gosto, vejo séries e leio livros e penso nela tantas vezes, ao ponto de se tornar uma brincadeira entre amigos, ao ponto de eu e o meu pai termos falado de um abrir uma funerária, ainda que eu ache que ele é demasiado puro para isso - dou por mim a pensar no fim, mas de forma diferente. não estou a pensar na morte, em si. mas sim a ganhar a consciência séria que ela existe. está ali. vou pegar numa citação de uma escritora que sigo e de quem gosto muito (Beth), para clarificar exatamente o mesmo que ela: eu não estive a morrer, não estou, não quis nem quero que aconteça. mas a ideia de finitude colou-se a mim, e quando isso acontece, ela não sai mais. é uma pregadeira no corpo, para sempre - “If you get it, you’ll get it”
[I’ll stop here and clarify: I didn’t and don’t want to die! That wasn’t the direction or the tone of these thoughts at all. It was just a wide open and constant awareness of dying. If you get it, you’ll get it.]
Beth McColl
a minha psicóloga refere brevemente uns traços de ptsd; combinamos falar mais tarde sobre esse assunto. ela pergunta se é o medo do futuro e eu penso que é e não é, mas que talvez o problema seja o passado, o problema é que eu desperdicei muita vida. eu sempre fui nostálgica. sempre senti uma pedra dura, escura, escorregadia dentro de mim que se cravava na garganta sempre que pensava no que passou e não volta. sempre tive medo que os dias melhores já tivessem passado. hoje, acredito que ainda há muitos dos melhores que estão para vir. mas estou também mais consciente dos que já foram.
no meio de tudo isto, leio uma entrevista feita ao Justin Vernon (Bon Iver), que adoro, em que ele e a jornalista falam sobre uma lista, para sempre em atualização, sobre as coisas e imagens mais solitárias que existem. rental park shuttle, pre-dawn, a horse, stuck in the mud, dizem como exemplos. lembro-me de uma lista parecida que tenho: a dog by the road, gunshots on a dry, hot, endless summer afternoon, an empty pool, fires, sinking in a tub, the medical’s office waiting room. acrescento, agora, thinking about how I felt. não é como me senti, na altura eu não pensei em nada senão em levantar-me, não desiludir as minhas amigas, não marcar daquela forma algo tão importante, não estragar o caminho, chegar a Santiago. esta tristeza e solidão absurda agora só surgem quando penso, agora, no que senti. quando me lembro do que foi. eu achava que eram dores físicas, mas todas as dores são emocionais também. esta é uma dor de crescimento, como aquelas que eu tinha tanto em pequena. mas numa outra direção. é o mesmo sentimento que tenho quando penso em mim criança repreendida pela minha mãe, de mão dada com o meu pai, quando penso no quão inocente era enquanto na escola gozavam comigo, quando me lembro de tanta coisa que me aconteceu. não quero ter pena de mim própria, mas não consigo deixar de pensar, não é justo. como pode ser justo, se eu sempre me esforcei tanto.
eu tenho uma relação difícil com crianças, quem me conhece sabe. tenho uma relação igualmente difícil - e intrinsecamente ligada à primeira - com a minha infância. já o disse várias vezes, o que mais me define é ser filha, mas é igualmente verdade que a coisa mais difícil que já fiz foi ser criança. talvez por isso agora me sinta tão confusa, tão emocional, talvez por isso peça à minha mãe para me fazer sopa de cebola, a minha sopa desde pequena, e ela me deixe dormir desde a tarde até ser noite, a luz a esvair-se do quarto, o meu corpo debaixo dos dois edredons que ela sempre me pôs na cama. talvez por isso, quando o meu pai parou o carro à frente da clínica para marcar os exames, eu tenha perguntado, numa voz quebrada de criança, não vens comigo? o meu pai levantou o olhar surpreendido, queres que vá? sim, eu respondi, e ele foi. mais tarde dormi no sofá de casa da minha avó, o mesmo no qual durmo desde criança, mesmo que o sofá não tenha mais de 1,20 de comprimento e eu não caiba lá senão totalmente enrolada em mim mesma, e quando acordei chorei porque não conseguia olhar para o meu pai sem o fazer. ele comprou-me sopa, fruta, medicação, e na mensagem que me mandou antes de ir dormir, eu já no porto, diz, toma a medicação direitinha e come a fruta que deves, filhota. o assombramento de pensar em todas estas finitudes e ao mesmo tempo ter de olhar os meus pais, a minha irmã, as minhas amigas, é demais para suportar.
talvez seja demasiado tarde, talvez não. talvez ainda possa honrar a criança de outrora, talvez possa perguntar, posso chorar? posso parar um bocadinho? chega sempre o momento em que uma vida tem de descansar.
disclaimer: eu estou bem! já contei esta história em formato cómico, stand-up, a três ou quatro vozes com as minhas amigas, e agora contei em dramazito porque esta semana foi assim que me senti. faz parte. a vida é mesmo assim, o bom e o mau <3
Fiquei sem palavras... Este texto vai ficar durante muito tempo comigo. Adorei a reviravolta que deu a certa altura. Transmites tantas emoção e dor, e é tão lindo, e tão triste, mais belo na sua dor. Já tinha sentido isto em textos anteriores teus, mas ler-te é um prazer, porque há verdade na tua escrita.
Sempre chorei muito e felizmente os meus pais sempre me deixaram chorar, nunca me fizeram sentir como se os tivesse a incomodar ou como se não tivesse direito. A minha mãe diz, sem maldade, apenas como constatação que sou “incontinente dos olhos”. E de facto cresci a sentir-me muito emocional, emocionalmente desregulada talvez, e embora isso me traga dissabores amiúde, sinto-me grata pela familiaridade que tenho com a vulnerabilidade. Faz-me sentir mais corajosa do que os outros porque choro por tudo e por nada em todo o lado e isso obriga-me a não ter vergonha. Espero que um dia também te sintas mais à vontade com a vontade de chorar, porque acredito que chorar seja uma forma de exorcizarmos as nossas dores, mesmo quando, e especialmente quando, não sabemos quais.